Tempo de admiração e não de reprovação
Há muitas Lauras que permanecem
no anonimato do coletivo das salas de aula,
a quem é necessário dar atenção ...
Final de ano nas escolas, mas não final de caminho. Os caminhos da aprendizagem não são trajetos lineares, com início, meio e fim. As crianças e jovens surpreendem a cada momento.
Há muitas Lauras que permanecem
no anonimato do coletivo das salas de aula,
a quem é necessário dar atenção ...
Final de ano nas escolas, mas não final de caminho. Os caminhos da aprendizagem não são trajetos lineares, com início, meio e fim. As crianças e jovens surpreendem a cada momento.
“Nenhum dia igual ao outro”, para quem os observa curiosamente.
Avaliar em educação significa acompanhar estas surpreendentes mudanças, “admirando” aluno por aluno em seus jeitos especiais de viver, de aprender a ler e a escrever, em suas formas de conviver com os outros para ajudá-los a prosseguir em suas descobertas, a superar seus anseios, dúvidas e obstáculos naturais ao desenvolvimento. Ninguém aprende sozinho. E os alunos não aprendem sem bons professores. Para favorecer, de fato, o melhor desenvolvimento possível, é necessário conhecê-los muito bem, conversar com eles, estar junto deles (Hoffmann, 2001; 2005).
Vou contar uma história de um “tempo de admiração” em avaliação. É uma história real dentre duas centenas que já tive o privilégio de acompanhar.
Em agosto de 2005, a supervisora educacional de uma escola particular do Nordeste escolheu a aluna Laura para “admirar” e para “cuidar” que aprendesse melhor. Em seu primeiro relatório, entre outras observações, escreveu:
Laura é uma adolescente de 13 anos, com corpo franzino, olhar distante, que cursa a 5ª série, e que escolhi para cuidar porque é bastante tímida. Tudo com Laura é aos “pouquinhos” – fala pouquinho, aprende de pouquinho... Conseguiu aprender a ler na 3ª série, mas precisou repetir, pois sentia um “pouquinho” de dificuldade em português e matemática. Pela observação lê gaguejando e soletra para ler. Está em aula de reforço e acha que está melhorando em matemática “um pouco”, mas em português não consegue avançar. Gosta da escola, de fazer os trabalhos em grupo, de conversar com as amigas. Confesso que durante as tarefas avaliativas sente frio nas mãos e fica trêmula, pois sabe que “na hora H” a memória não funciona, dá um branco...
Em conversa da supervisora com seus professores, eles foram unânimes em diagnosticar a aluna como um caso sem solução: “Não aprendeu nada durante o ano, está com notas baixas – sem chance de mudar de série; aquilo é um caso sui generis, não participa, não faz tarefas, até a chamada responde baixinho; apresenta-se apática em sala de aula, não há motivação; nunca faz as tarefas, só funciona no grupo”.
Os pais de Laura, em conversa com a supervisora por ocasião do estudo, disseram que ela tinha sérias limitações desde pequena, que haviam consultado médicos e especialistas: “Não faz nada em casa, sempre se sente cansada, não tem rotina de estudos, se acha feia, burra...”
Mas a supervisora acreditou na menina. Conversou com ela, ofereceu sua ajuda e se dispôs a fazer do “seu pouquinho” de Laura, de sua voz inaudível, do seu “caso crítico”, o seu maior compromisso naquele momento. Sentou com ela para orientá-la a se organizar em suas tarefas, comprou-lhe um pequeno diário para se corresponderem por escrito, trocou Laura de lugar na sala de aula, sentando-a bem na frente e pedindo aos professores que se comprometessem a orientá-la, leu, com a menina, livros de pequenas histórias para adolescentes...
Mais do que isso, a supervisora “mimou” Laura. Ia buscá-la na hora da saída para lhe dar um beijo e ver como estavam as coisas, elogiou seu corpo magrinho e esbelto, sugeriu que soltasse os cabelos, que usasse batom. A relação entre as duas tornou-se uma amizade verdadeira. E Laura, que escondia até então seu desejo de “ser modelo e de desfilar” no fundo de uma sala emudecida, revelou-se uma linda e esperta adolescente de 13 anos. Fez mais amigos na escola. Foi convidada pra novos grupos de trabalho.
Em três meses, Laura estava lendo e escrevendo melhor, fez e apresentou o melhor trabalho de geografia da classe na Mostra Cultural da escola, progrediu em todas as disciplinas como comprovaram os professores (nem tanto em matemática, cuja professora resistiu em acreditar). Foi aprovada para a série seguinte.
Em seu depoimento em vídeo, Laura disse que mudou de “lugar na sala e na vida, e que agora estava tudo diferente”. Os pais agradeceram por sua notável evolução e desejo de aprender. O que se viu na tela foi uma menina alegre e charmosa, de brincos, cabelos soltos, com um largo sorriso no rosto.
A supervisora me disse que iria continuar “cuidando” de Laura no ano seguinte, que considerava seu compromisso dar continuidade ao que iniciara, pois ela ainda precisava de auxílio em leitura e escrita.
Há muitas Lauras que permanecem no anonimato do coletivo das salas de aula, a quem é necessário dar atenção, ensinar o que ainda não aprendeu, auxiliar a organizar agendas e cadernos. Ao invés disto, por vezes, ficam abandonadas. “Não sei por onde começar!” – me disse uma professora. Não há caminhos prontos, metodologias definidas para se aproximar dos alunos e compreendê-los melhor. Esta é uma tarefa que se inicia sem saber por onde continuar ou se teremos coragem de interromper. Como a supervisora que cuidou de Laura percebeu – fica-se eternamente comprometido com os alunos a quem “admiramos e promovemos”! É sempre “tempo de admirá-los”, não de reprová-los! Pouco tempo, alguns meses apenas no final do ano podem representar a superação de uma vida inteira para crianças e jovens.
Posso dizer que tenho o privilégio de ter visto isto acontecer pela coragem e compromisso de educadores que acreditam nesta possibilidade.
FONTE:
Hoffmann, Jussara Maria Lerch. Avaliar: respeitar primeiro, educar depois. Porto Alegre: Mediação, 2008.
Avaliar em educação significa acompanhar estas surpreendentes mudanças, “admirando” aluno por aluno em seus jeitos especiais de viver, de aprender a ler e a escrever, em suas formas de conviver com os outros para ajudá-los a prosseguir em suas descobertas, a superar seus anseios, dúvidas e obstáculos naturais ao desenvolvimento. Ninguém aprende sozinho. E os alunos não aprendem sem bons professores. Para favorecer, de fato, o melhor desenvolvimento possível, é necessário conhecê-los muito bem, conversar com eles, estar junto deles (Hoffmann, 2001; 2005).
Vou contar uma história de um “tempo de admiração” em avaliação. É uma história real dentre duas centenas que já tive o privilégio de acompanhar.
Em agosto de 2005, a supervisora educacional de uma escola particular do Nordeste escolheu a aluna Laura para “admirar” e para “cuidar” que aprendesse melhor. Em seu primeiro relatório, entre outras observações, escreveu:
Laura é uma adolescente de 13 anos, com corpo franzino, olhar distante, que cursa a 5ª série, e que escolhi para cuidar porque é bastante tímida. Tudo com Laura é aos “pouquinhos” – fala pouquinho, aprende de pouquinho... Conseguiu aprender a ler na 3ª série, mas precisou repetir, pois sentia um “pouquinho” de dificuldade em português e matemática. Pela observação lê gaguejando e soletra para ler. Está em aula de reforço e acha que está melhorando em matemática “um pouco”, mas em português não consegue avançar. Gosta da escola, de fazer os trabalhos em grupo, de conversar com as amigas. Confesso que durante as tarefas avaliativas sente frio nas mãos e fica trêmula, pois sabe que “na hora H” a memória não funciona, dá um branco...
Em conversa da supervisora com seus professores, eles foram unânimes em diagnosticar a aluna como um caso sem solução: “Não aprendeu nada durante o ano, está com notas baixas – sem chance de mudar de série; aquilo é um caso sui generis, não participa, não faz tarefas, até a chamada responde baixinho; apresenta-se apática em sala de aula, não há motivação; nunca faz as tarefas, só funciona no grupo”.
Os pais de Laura, em conversa com a supervisora por ocasião do estudo, disseram que ela tinha sérias limitações desde pequena, que haviam consultado médicos e especialistas: “Não faz nada em casa, sempre se sente cansada, não tem rotina de estudos, se acha feia, burra...”
Mas a supervisora acreditou na menina. Conversou com ela, ofereceu sua ajuda e se dispôs a fazer do “seu pouquinho” de Laura, de sua voz inaudível, do seu “caso crítico”, o seu maior compromisso naquele momento. Sentou com ela para orientá-la a se organizar em suas tarefas, comprou-lhe um pequeno diário para se corresponderem por escrito, trocou Laura de lugar na sala de aula, sentando-a bem na frente e pedindo aos professores que se comprometessem a orientá-la, leu, com a menina, livros de pequenas histórias para adolescentes...
Mais do que isso, a supervisora “mimou” Laura. Ia buscá-la na hora da saída para lhe dar um beijo e ver como estavam as coisas, elogiou seu corpo magrinho e esbelto, sugeriu que soltasse os cabelos, que usasse batom. A relação entre as duas tornou-se uma amizade verdadeira. E Laura, que escondia até então seu desejo de “ser modelo e de desfilar” no fundo de uma sala emudecida, revelou-se uma linda e esperta adolescente de 13 anos. Fez mais amigos na escola. Foi convidada pra novos grupos de trabalho.
Em três meses, Laura estava lendo e escrevendo melhor, fez e apresentou o melhor trabalho de geografia da classe na Mostra Cultural da escola, progrediu em todas as disciplinas como comprovaram os professores (nem tanto em matemática, cuja professora resistiu em acreditar). Foi aprovada para a série seguinte.
Em seu depoimento em vídeo, Laura disse que mudou de “lugar na sala e na vida, e que agora estava tudo diferente”. Os pais agradeceram por sua notável evolução e desejo de aprender. O que se viu na tela foi uma menina alegre e charmosa, de brincos, cabelos soltos, com um largo sorriso no rosto.
A supervisora me disse que iria continuar “cuidando” de Laura no ano seguinte, que considerava seu compromisso dar continuidade ao que iniciara, pois ela ainda precisava de auxílio em leitura e escrita.
Há muitas Lauras que permanecem no anonimato do coletivo das salas de aula, a quem é necessário dar atenção, ensinar o que ainda não aprendeu, auxiliar a organizar agendas e cadernos. Ao invés disto, por vezes, ficam abandonadas. “Não sei por onde começar!” – me disse uma professora. Não há caminhos prontos, metodologias definidas para se aproximar dos alunos e compreendê-los melhor. Esta é uma tarefa que se inicia sem saber por onde continuar ou se teremos coragem de interromper. Como a supervisora que cuidou de Laura percebeu – fica-se eternamente comprometido com os alunos a quem “admiramos e promovemos”! É sempre “tempo de admirá-los”, não de reprová-los! Pouco tempo, alguns meses apenas no final do ano podem representar a superação de uma vida inteira para crianças e jovens.
Posso dizer que tenho o privilégio de ter visto isto acontecer pela coragem e compromisso de educadores que acreditam nesta possibilidade.
FONTE:
Hoffmann, Jussara Maria Lerch. Avaliar: respeitar primeiro, educar depois. Porto Alegre: Mediação, 2008.